Coesão, estilo e intencionalidade


Jacarta abria as suas páginas na noite e a diferença de fuso horário mantinha-me as pupilas dilatadas. Olhos abertos pelo cansaço da viagem de Londres para Kuala Lumpur, na Malásia, e depois... depois para a indefinição, Jacarta.
"Camões" só me acompanhou até Londres. A partir daí deixou-me entregue a esse legado infinito. Nas treze horas seguintes, enquanto o Jumbo rasgava as altitudes, só me ouvia a mim próprio a sussurrar o português. Nem uma palavra na língua que um dia cruzou oceanos e povoou o mundo. A língua - que um dia aportou em águas límpidas de corais multicolores e deixou marcas arrastadas pelos séculos - tinha ficado para trás. Senti ali, no longo caminho de virtudes. E ninguém o sabia. Só eu...

VELADAS, Antônio. Timor: terra sentida. Portugal: Publicações Europa-América, 2001. Edição bilíngue.

Você prestou atenção na palavra Camões que aparece no texto? Nesse caso, o substantivo não está fazendo referência ao poeta português, mas a outro conceito: a língua portuguesa (trata-se de um processo metonímico, em que se emprega o falante pela língua falada). O jornalista português Antônio Veladas, a partir do segundo parágrafo, escreve sobre a língua portuguesa. Para isso, ele se vale de várias expressões lexicais para nomeá-la e retomá-la: Camões; o português; na língua que um dia cruzou oceanos e povoou o mundo; a língua -que um dia aportou em águas límpidas de corais multicolores e deixou marcas arrastadas pelos séculos; do tesouro linguístico.

Além do valor estilístico do emprego de alternativas lexicais num texto, a seleção delas pode manifestar posicionamento, sentimento, emoção. No caso do fragmento lido, o jornalista manifesta amor, admiração e respeito pela língua portuguesa, sentimentos evidenciados pelos substantivos selecionados (tesouro) e pela adjetivação (orações adjetivas). Vamos pensar se, ao contrário, as alternativas fossem: língua imposta por colonizadores; carga linguística, a língua - que um dia contaminou outras etc. Que diferença!

O substantivo, como sabemos, designa, nomeia. Isto é, o emprego de um substantivo implica a associação com um conceito a que faz referência. Assim, ao empregar, por exemplo, o substantivo próprio Camões, referimo-nos a um ser, ao conceito desse ser (Luís de Camões). Mas, na montagem de um texto sobre ele, em que teríamos de nomeá-lo constantemente, para não deixar o texto redundante, poderíamos empregar algumas outras designações que o apontam ou descrevem: o maior poeta português, o autor de Os Lusíadas etc. Da mesma forma, ao nos referirmos ao autor do texto anterior, poderíamos empregar Antônio Veladas, o jornalista português, o escritor, o autor de Timor: terra sentida, o jornalista que cobriu a luta pela independência do Timor etc. Essas designações, alternativas lexicais, podem beneficiar um texto: permitem a coesão lexical interna sem perder estilo, pois evitam redundâncias.

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